“Teletransmissão dos sacramentos”: desafio da vida paroquial durante a pandemia
No primeiro semestre de 2020, as políticas de isolamento social impostas pela pandemia da Covid-19 aceleraram transformações sociais. Ao contrário do que o senso comum poderia pressupor, muitas das mudanças observadas já constavam do fluxo histórico anterior ao mesmo período. A preponderância dos veículos de comunicação e informação na mediação das relações interpessoais era uma tendência observada nas décadas anteriores, acirrada no século XXI pela gradativa onipresença da internet ao redor do globo, avançando sobre as tarefas cotidianas e a intimidade das pessoas.
Para as paróquias, a disseminação do novo coronavírus representou um desafio de virtualização das celebrações e de reposicionamento das práticas pastorais. As redes sociais, espaços em que os indivíduos cada vez mais constroem suas identidades e se interligam em comunidades, passaram a ser os canais pelos quais não só a sacramentalidade era erigida, mas também a pertença comunitária das igrejas podia ser vivenciada.
A despeito das dificuldades inerentes ao processo de estruturação técnica dos aparatos necessários para as transmissões, abundam exemplos exitosos de uso das redes em nome da perseverança das atividades paroquiais em tempos de exceção. Em muitos casos, o espírito comunitário foi aceso para que pessoas excluídas do meio virtual fossem integradas a ele. Além disso, as páginas e os perfis receberam um volume maior de visitas e interações, sobretudo durante a celebração virtual das missas.
O que se observou foi que as práticas amplamente difundidas de sociabilidade na internet puderam ser utilizadas em favor de uma semântica religiosa. A instantaneidade e a ubiquidade das redes sociais foram ativadas por ritos religiosos, desígnios pastorais e a exacerbação do espírito comunitário paroquial. Em um momento tão difícil quanto a pandemia, as pessoas estavam felizes de poderem vivenciar um simulacro de suas crenças.
De fato, a teletransmissão dos sacramentos levanta uma série de questões no âmbito da teologia litúrgica. Canonicamente, exige-se a união de um símbolo físico — o pão, o vinho, a água e a bênção do padre — com uma experiência de fé. Desse modo, e sem a pretensão de querer esgotar o tema, não há como prescindir da vivência in loco da vida paroquial e de uma fé comungada nos territórios. Ainda assim, o confinamento fez soar o alarme sobre a capacidade da igreja de exercer seu papel de evangelização nesses novos espaços.
O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, demarca a necessidade de um novo ardor pastoral na Igreja, capaz de dar conta das interpelações próprias do nosso tempo. A tecnologia e as redes sociais serão aliadas nessa missão. Durante o isolamento, os fiéis recorreram às páginas e aos perfis de suas paróquias — e, não, aos canais de televisão católicos com mais estrutura — porque há ali uma dimensão de afetividade e de vivência da fé que apenas a autenticidade de suas comunidades poderia oferecer.
A manutenção desses aparatos e das novas práticas deve ser seriamente considerada em cada comunidade. O receio de que o virtual sobrepuje o presencial não deve ofuscar o que já se sabe pela experiência de outros fazeres culturais: um não exclui o outro, muito pelo contrário. Mais do que substituir, a internet oferece possibilidades linguageiras outras, as quais complementam e valorizam as especificidades da vivência física. As redes sociais são a praça pública do século XXI onde os fiéis querem poder demonstrar sua fé. A praticidade e o alcance difuso desses meios serão aliados para mobilizar e engajar os católicos do nosso tempo.
Marcos Kalil – Niterói/RJ
*Marcos Kalil é pesquisador e professor de Semiótica, advogado e jornalista