ENTREVISTA: Impulsionado pela dimensão social da fé, jovem da Diocese atua no Fórum Mundial de Alimentação da FAO
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.Luís Rogério, jovem de 22 anos, atualmente segue os estudos acadêmicos sobre a dimensão social da fé em Roma. Também representa a América Latina e Caribe no Fórum Mundial de Alimentação da FAO.
“A fome dói”. Para a comunidade cristã, o escândalo da fome no Brasil e no mundo deveria ser inaceitável. Mas, na intimidade da casa, nas ruas, na porta de nossas paróquias, de mercados e restaurantes, a cena de alguém pedindo ajuda para ter uma refeição ainda é recorrente. Todos os dias milhares de pessoas sentem essa dor física, existencial, extremamente injusta e imoral para a humanidade.
Neste dia Mundial da Alimentação, a Comissão Episcopal para a Ação Sociotransformadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Cepast-CNBB) conversou com Luís Rogério, jovem da geração Z, que nasceu em Queluz (SP) e migrou para São José dos Campos (SP), aos 15 anos, após perder o pai. Ali concluiu sua formação acadêmica, iniciou a caminhada político-social e alicerçou sua atuação nas Pastorais Sociais.
Intimamente alinhado à visão do Papa Paulo VI e do Concílio Vaticano II, dedica-se ao estudo acadêmico e pesquisa do Ensino Social Católico, com ênfase na Doutrina Social da Igreja. Seus temas de pesquisa são: migração, fome, tráfico de pessoas e desenvolvimento dos povos. Atualmente, vive em Roma e como bolsista estuda Ciências Sociais na Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino – Angelicum. Colabora na Rede Thalita Kum, de combate ao tráfico de pessoas, e é membro do Fórum Mundial de Alimentação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Hoje você integra o Fórum Mundial de Alimentação da FAO. Como essa trajetória foi motivada pela sua atuação no âmbito das pastorais sociais da Igreja Católica?
Luís Rogério: Eu venho de uma família de operários, de trabalhadores. Minha mãe trabalhava como empregada doméstica, meu pai trabalhou no eucalipto, depois trabalhou em outros setores.
Cresci numa família católica, então, eu sempre estive muito ligado a essa realidade de fé e política, porque por mais que hoje muitos tentam, não existe uma dicotomia entre fé e política. Conforme eu fui amadurecendo, crescendo, eu fui me engajando na atuação social através das Pastorais Sociais. Trabalhei na Pastoral do Menor, Pastoral da Educação, na Pastoral da Criança, na Comissão Sociopolítica da minha diocese, e tantas outras atividades pastorais. E fui, como disse, amadurecendo essa minha consciência política-social, por meio da fé. Eu digo que sou cria do Conselho Vaticano II.
E depois, cresci também, dentro dos meus estudos, sempre estudei muito sobre a Teologia da Libertação, nossa teologia latino-americana. Documentos de Medellín, Puebla, Santo Domingo, Aparecida. Então, tudo isso foi amadurecendo o meu pensamento teológico, minha vida espiritual, digamos assim.
Qual o seu papel enquanto membro do Fórum Mundial de Alimentação da FAO?
Luís Rogério: O Fórum Mundial de Alimentação foi criado, instituído em 2021 pela FAO, com o objetivo de unir vozes, a sociedade civil, profissionais e acadêmicos para iniciar, fomentar e liderar o diálogo na questão da transformação dos sistemas agroalimentares, ou seja, transformar o atual modo de produzir os alimentos em sistemas sustentáveis, equitativos e resilientes, que garantam a segurança alimentar na reprodução, na produção, na distribuição e no descarte de alimentos. Esse é o objetivo do Fórum e é isso que nós, membros, fazemos. E também trabalhar pela segurança alimentar, pela nutrição e para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, a Agenda 2030, especialmente a erradicação da fome e da pobreza. Como representantes da sociedade civil no Fórum Mundial de Alimentação, assumimos uma cadeira, um posto, representamos uma região. No meu caso, a América Latina e Caribe.
A nossa luta não é individual, é uma luta coletiva. Então, eu vejo que nós, como membros e representantes, devemos ser porta-voz da sociedade civil no Fórum. Eu não estou no Fórum para falar o que eu penso, mas o que o nosso povo latino-americano e caribenho pensa e espera na questão da transformação dos sistemas agroalimentares. Isso é muito importante. Eu tenho muito orgulho de dizer isso, que eu sou brasileiro e latino-americano. Nós representamos o nosso continente, o nosso povo. Diria até que é um modo sinodal, usando a nossa expressão católica, o modo como o Fórum trabalha é um modo sinodal.
Como o apoio de instituições católicas te permitem viver essa experiência em Roma e como entende que outros jovens também podem ter oportunidades assim, como a sua?
Luís Rogério: Primeiro eu diria aos jovens que não é fácil, mas incentivo aos que desejam seguir esse caminho, não desanimem no começo, perseverem. O apoio das instituições católicas é muito importante, porque, por exemplo, eu sou um jovem leigo, e para nós leigos, infelizmente, dentro da Igreja, as coisas já são 50% mais difíceis.
Mas, estudar Doutrina Social da Igreja, numa Pontifícia Universidade Católica, em Roma, morar em uma comunidade religiosa, isso é possível graças ao apoio que eu recebo da nossa Igreja, através das instituições. Quais instituições? Aquelas que concedem bolsas de estudo para que nós leigos possamos trilhar esse caminho de estudos para o serviço da nossa comunidade, o serviço da Igreja.
É uma entrega, eu queria dizer isso aos jovens, é realmente uma entrega de vida, porque não é que eu estudo Doutrina Social da Igreja, trabalho com as Pastorais Sociais das oito horas da manhã, às cinco da tarde, não, é uma entrega, uma doação de vida. Quando você vê, não tem mais como voltar, só tem como você continuar, seguir em frente. Mas é uma vida feliz, é uma experiência que traz muita realização. Essa opção que fiz já me proporcionou viver experiências fantásticas.
Em 2025 o Brasil voltou a sair do mapa da fome, o que pode garantir o fortalecimento deste cenário nos próximos anos?
Luís Rogério: O que significa dizer que o Brasil saiu do mapa da fome? Essa é a grande pergunta. Muitos comemoraram, mas muitos não entenderam.
Algumas pessoas me escreveram e disseram: mas se as pessoas continuam pedindo comida na rua, como dizer que o Brasil saiu do mapa da fome? Então, vamos lá. Quando a FAO certifica que o país, no caso nosso, o Brasil, saiu do mapa da fome, ela quer dizer que menos de 2,5% da população está em risco de subnutrição ou de não ter acesso à alimentação suficiente. Mas é verdade também que ainda tem, no caso do Brasil, o equivalente a aproximadamente 5 milhões de pessoas em risco. Então, não é que a fome deixou de existir, é que esse número caiu. Lembremos, no entanto, que durante a pandemia de Covid-19 o número de pessoas que estava em risco de subnutrição chegou a 10% da população.
O que devemos fazer nos próximos anos para que esse cenário positivo continue? Fortalecer os programas sociais, que hoje são os meios mais eficazes que nos permitem chegar a esse nível, alcançar esse objetivo. Um dos pilares desta pauta é fomentar e apoiar a agricultura familiar. Isso é o principal, isso que nós devemos fazer daqui para frente, continuar esse caminho já feito, apoiando a agricultura familiar, investindo nos programas sociais, que hoje, na realidade do Brasil, é o único meio que permitirá superar essa desigualdade tremenda, absurda, vergonhosa que existe entre nós.
O agronegócio não alimenta a nossa população, o agronegócio recebe subsídio do governo federal para produzir e vender para fora. Quem alimenta a população é a agricultura familiar, é o pequeno produtor rural. O que quer dizer agricultura familiar? São os pequenos produtores rurais que cultivam nas suas terras e vendem, compartilham. Por meios das cooperativas, abastecem a quitanda, o mercado, as feiras. Não precisa a gente ter medo, porque a agricultura familiar não quer invadir terreno, não quer pegar a casa de ninguém, só quer produzir alimento sem agrotóxico, alimento saudável. Hoje, a agricultura familiar é a maior produtora de arroz orgânico do Brasil.
A dimensão social da fé nos coloca na incidência por políticas públicas que garantam direitos sociais básicos, como o acesso à alimentação. Como jovem, qual o seu olhar para essa dimensão?
Luís Rogério: A fome dói. A fome é uma vergonha. É uma vergonha ainda maior que em países de maioria cristã haja fome. São Cirilo de Jerusalém, um dos Padres da Igreja, dizia: “hoje nós não vamos celebrar a Eucaristia, porque um irmão morreu de fome”. Santo Oscar Romero, um santo do nosso continente, também ele dizia assim: “uma religião de missa dominical, mas de semanas injustas, não agrada a Deus”. O Papa Leão também vai falar isso na Exortação Apostólica Dilexi Te, que ele publicou recentemente sobre o cuidado com os pobres.
Então, para nós, a partir da dimensão social da fé, é uma obrigação trabalharmos combatendo essa vergonha que é a fome. O Saramago dizia que uma vez alguém perguntou para ele se não achava que determinada coisa era obscena. Ele dizia, “obscena e imoral é a fome”.
Então, penso que a partir da dimensão social da fé, se vemos um irmão que passa fome, que não tem o que comer, e somos indiferentes, isso é uma vergonha, nós não compreendemos o Evangelho. O Papa Francisco traduziu bem isso quando disse que “o contrário do amor não é o ódio é a indiferença”.
Como você entende hoje os desafios da mobilização das juventudes em espaços e ações que tenham a identidade da dimensão social da Igreja?
Luís Rogério: Existe uma praga chamada fundamentalismo. O Papa Francisco usou essa expressão para se referir ao clericalismo, mas eu acho que também podemos usar para nos referirmos ao fundamentalismo das pessoas que vivem a separação entre fé e política. É uma fé sem compromisso, um farisaísmo moderno.
Na Dilexi Te, o Papa Leão cita o profeta Amós e o profeta Isaías, e ele diz daquele interpelo que os profetas fazem ao povo de Israel de começar a reforma do povo a partir do culto. Não adianta prestarmos culto a Deus se oprimimos o pobre. E é essa a expressão que o Papa Leão vai usar. Oprimir os pobres e os excluídos. Então, acho que esse fundamentalismo impede a mobilização, impede que as pessoas compreendam essa dimensão entre a fé e a política. É uma coisa triste, porque o pior fundamentalista é o fundamentalista religioso. Porque ele tem uma visão de Deus, que se o próprio Deus aparecer na frente dele e se mostrar diferente, ele não vai acreditar e não vai aceitar, porque na cabeça já criou aquele Deus que ele queria, segundo a imagem e semelhança que acredita ser a verdade.
É uma coisa triste, porque isso tem crescido no Brasil em torno das juventudes, mas nós ainda temos uma juventude que trabalha e luta pelo bem comum. Não podemos também nos contentar com o pessimismo. Eu conheço tantos jovens bons que estão aí no Brasil, que estão no Paraná, em São Paulo, lá na Amazônia, que estão no Nordeste, em tudo quanto é lugar, que trabalham, que sonham por esse mundo mais justo, que trabalham pelo Reino de Deus. Isso me dá mais esperança do que pessimismo, sabe?
Diante da sua experiência nas pastorais sociais na Igreja Católica e agora na FAO, é possível dimensionar o que pode mobilizar ainda mais as juventudes para liderar iniciativas nacionais e internacionais na busca de vida plena para todas as pessoas, a partir dos valores da Doutrina Social da Igreja?
Luís Rogério: A nossa geração, a minha geração, essa juventude que está vindo, ela está sendo criada diante de todo esse cenário mundial que nós vemos de guerra, de afrontamento ao direito internacional. A nossa geração está sendo levada a não acreditar nos órgãos internacionais, ONU, FAO, OMS. Esse é um grande problema, então, eu acho que nós precisamos nos mobilizar.
Primeiro, dizer que não é que esses órgãos não funcionam, que eles são inúteis, mas que precisam de uma reforma, que precisam, sim, melhorar algumas coisas. As instituições internacionais, de direito internacional, são viáveis, necessárias e eficientes.
Então, eu acho que fazer com que a juventude assuma essa responsabilidade, tenha consciência que como cristãos precisamos assumir algumas lutas. E, a partir daí, engajar na luta social por um mundo mais justo, de defesa dos irmãos e irmãs mais pobres. Porque não é uma honra, não é um privilégio para mim poder contribuir no debate do Fórum Mundial de Alimentação é uma responsabilidade, primeiro de tudo e um dever, eu diria.
Nós queremos ser construtores de pontes, então eu também desejo ser essa ponte. Eu tenho um blog, sfluizrogerio.blog, podem me escrever, mas o que seria mais importante, e lanço o convite à juventude é que o Fórum Mundial de Alimentação tem consultas, sessões temáticas, praticamente todos os meses e por regiões. Então, que vocês entrem na Sessão Virtual da Região América Latina e Caribe, clica lá, entra, participa, fala. Não precisa saber inglês, escreve na sua língua, coloca lá a sua contribuição, isso é importante, porque agora, esse ano de 2025, nós vamos trabalhar o documento que foi feito pelo mandato passado, através dessas consultas. Começamos uma nova consulta para fazer um documento para o próximo mandato que vai trabalhar no ano seguinte.
Que a juventude participe desse processo, são processos online, fáceis. Eu sei que cada um tem as suas dificuldades, os seus trabalhos, mas que faça esse esforço para participar, para que a nossa voz seja ouvida, para que façamos ouvir o nosso grito, o grito do nosso continente, o grito do nosso povo.
Qual a sua mensagem central neste Dia Mundial da Alimentação?
Luís Rogério: Este não é um dia de comemoração, é um dia muito mais de reflexão e de ação, porque nós não temos o que comemorar num mundo dilacerado pela guerra, em que a fome é usada como arma de guerra. Mas fica a reflexão, o que eu posso fazer a partir da minha realidade para o combate à fome? Não é que nós precisamos ir a outros continentes para combater a fome, na nossa comunidade mesmo nós podemos fazer muitas coisas.
Hoje tem uma iniciativa muito bonita no Brasil que são as Cozinhas Solidárias, por exemplo, podemos ajudar nas Cozinhas Solidárias, temos a Pastoral do Povo de Rua, que assiste os nossos irmãos que vivem em situação de rua, podemos ajudar.
Madre Teresa de Calcutá dizia: “o que eu faço é uma gota no meio do oceano, mas sem ela o oceano ficaria menor”. Então, que o dia de hoje sirva para refletirmos sobre o que nós fazemos e o que podemos fazer para combater essa realidade tão cruel que é a fome, que flagela a humanidade, que flagela os povos.
Sejamos operadores de paz, de justiça, de fraternidade, de amor. E o principal instrumento para que venha a paz, primeiro de tudo, é vencermos a fome.
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