Justiça e Misericórdia, caminhos para a compreensão de Deus
No evangelho de Mateus 20,1-16, Jesus conta uma parábola intrigante. Ela retrata a realidade social de sua época: latifundiários beneficiados pelo sistema agrário do Império Romano e diaristas sem a garantia de um recurso estável para manter suas famílias. A narrativa conta que, com os operários da primeira hora, o patrão combina um determinado valor – uma moeda de prata pelo dia. Já com os demais, não há contrato firmado. Quanto mais tarde, mais os operários que ainda não foram chamados para trabalhar ficam propensos a se submeterem a qualquer proposta, tornando-se, assim, presas fáceis para a exploração. Numa situação desigual, apenas os fortes possuem garantias. Enfim, chega o momento do acerto de contas e, qual surpresa, todos recebem o mesmo ordenado, indistintamente. Diante do protesto dos trabalhadores da primeira hora, o patrão afirma a sua arbitrariedade e realiza uma espécie de culpabilização da vítima – “Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja, porque estou sendo bom?” Na narrativa precedente, Jesus adverte o jovem rico que somente Deus é bom (cf. Mt 19,17), portanto, jamais poderia ser identificado com um senhor de terras arbitrário, cuja pretensa bondade serve senão para lhe garantir mão de obra. O Reino dos Céus clama por uma necessária conversão, aos moldes do apelo profético de Isaías: “Abandone o ímpio seu caminho, e o homem injusto, suas maquinações”. Aqueles, porém, que se comprometem com a justiça serão os últimos num sistema que se fundamenta precisamente na injustiça.
De acordo com São Gregório Magno, “o texto cresce com o seu leitor”. Deste modo, na longa tradição de interpretação das Escrituras, muitos viram nesta parábola o apelo para compreendermos que aquilo que podemos chamar “bondade divina” supera qualquer entendimento que dela possamos ter. Novamente Isaías: “Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos”. Deus não pensa como a gente! Não poucas vezes, nossos juízos se baseiam no tempo e na quantidade friamente calculados, mas Deus está além de nossos “quadrados”. Enquanto pensamos em termos de troca, Deus age na graça. Todo esforço da nossa parte não pode visar o merecimento disto ou daquilo, mas deve acontecer como resposta generosa ao seu amor que nos envolve, amor que é gratuito. Nosso esforço deveria ser, na verdade, pura gratidão, algo que não espera nada em troca. Na medida em que nos desfazemos da lógica do “toma lá dá cá”, vamos descobrindo que a misericórdia divina abraça a todos e convida a nos congratularmos com os que chegam tarde, simplesmente porque chegam. Neste caso, o dono da vinha não é o vilão trapaceiro, mas alguém que assumiu o desespero daqueles que ficaram à margem, garantindo-lhes, de alguma forma, o sustento de suas famílias. Em última análise, o centro do Evangelho é a redescoberta do que o Salmo 144 professa: “Misericórdia e piedade é o Senhor, Ele é amor, é paciência, é compaixão. O Senhor é muito bom para com todos, sua ternura abraça toda criatura”.
É certo que a misericórdia não pode prescindir da justiça, caso contrário, como anunciá-la aos injustiçados? Seria o mesmo que negar-lhes a esperança e o direito à justiça. Deus não é arbitrário, a justiça é a medida mínima da misericórdia. Mas não sejamos reducionistas: a misericórdia ultrapassa qualquer medida que possamos imaginar. Deixemos que ressoe em nosso coração o convite provocativo de Paulo na Carta aos Filipenses: “Vivei à altura do Evangelho de Cristo”.
PE. ÉVERTON MACHADO DOS SANTOS
Vigário da Paróquia São Dimas
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Rezemos
Pai querido, que sempre estais perto de nós, vos invocamos com confiança, a fim de que nos torneis, com a vossa graça, comprometidos com a justiça. Igualmente queremos nos abrir à vossa infinita misericórdia, que nos surpreende. Que aprendamos, a partir de ambas, a colocar os últimos da sociedade como primeiros em nossas intenções e ações. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.
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